G20 e a vida real
Quando a ficção alerta sobre a urgência da regulamentação digital

*Por Laryssa Almeida
Em 23 de abril, o Marco Civil da Internet completou 11 anos. Regulamentada em 2014, essa legislação foi um marco importante para a proteção dos direitos dos usuários, pois garantiu princípios fundamentais como neutralidade da rede, privacidade e liberdade de expressão. Mas o tempo mostrou que a velocidade das transformações digitais é muito maior do que a capacidade das leis de acompanhá-las. Afinal, a internet de 2025 pouco se parece com a de 2014 e os riscos que enfrentamos hoje exigem respostas urgentes, especialmente quando falamos de manipulação de informação.
É justamente esse o tema que o filme G20, estrelado por Viola Davis e disponível no Prime Vídeo, explora de maneira brilhante e perturbadora. Nele, a atriz interpreta a presidente dos EUA durante uma cúpula do G20 na África do Sul, invadida por terroristas com um plano audacioso: capturar dados biométricos de líderes mundiais para produzir vídeos manipulados — os chamados deepfakes — nos quais chefes de Estado fazem declarações falsas e alarmantes. No filme, esses vídeos falsos, divulgados em massa, causam pânico nos mercados, derrubam o dólar e valorizam criptomoedas controladas pelos próprios terroristas.
Ficção? Sim. Mas também um retrato assustadoramente plausível do que a combinação de inteligência artificial generativa e algoritmos de viralização tornam as fake news ainda mais sofisticadas e difíceis de combater. No filme, os vilões usam ferramentas que, na vida real, estão ao alcance de qualquer pessoa com conhecimento técnico mediano: IA para criar rostos, vozes e cenários falsos, e redes sociais para espalhá-los como fogo em palha seca.
E nem é preciso imaginar um golpe geopolítico para perceber a dimensão do problema. Tome-se como exemplo recente a suposta camisa reserva da Seleção Brasileira para a Copa de 2026. A notícia de que o uniforme seria vermelho e produzido pela Jordan, publicada pelo site inglês Footy Headlines, viralizou rapidamente. Em menos de 24 horas, o tema acumulou mais de 4,3 milhões de menções nas redes sociais, segundo dados da Ativaweb. A repercussão foi tamanha que a CBF precisou emitir uma nota oficial desmentindo a informação.
Para o CEO da Ativaweb, Alek Maracajá, o episódio teve mais do que apelo esportivo: “Foi uma jogada de marketing político, um gatilho simbólico pensado para incendiar as redes e tensionar ainda mais a polarização”, analisou.
E esse é só um exemplo banal. O que aconteceria se, em vez de uma camisa de futebol, o tema envolvesse uma crise política ou econômica? Em janeiro deste ano vivemos o episódio da fake news do Pix, que ajudamos a esclarecer nesta coluna.
A confusão mostra o quão vulnerável a opinião pública se tornou. Sem regulamentação adequada, as redes sociais continuam sendo um ambiente fértil para a desinformação, que deixou de ser apenas ruído para se tornar uma arma política poderosa. E o público mais exposto a essa armadilha está justamente nas gerações mais conectadas.
Segundo estudo desenvolvido por psicólogos da Universidade de Cambridge ao longo de dois anos, as gerações Millennials e Z, a primeira pioneira digital e a segunda nativa digital, são as mais vulneráveis às fake news. Neste estudo, pessoas jovens, de 18 a 29 anos, bem como, usuários frequentes da internet se mostraram mais propensos a cair em fake news, enquanto pessoas mais velhas e consumidores de mídias tradicionais conseguiram identificar manchetes reais com mais facilidade.
Uma possível explicação para esse fato é que o excesso de estímulos e a velocidade da informação nas redes sociais tornaram a verificação um luxo que poucos se permitem. E, sem regulação, as plataformas seguem como um campo minado de desinformação, impulsionada por interesses políticos e econômicos.
Enquanto isso, no Congresso Nacional tramita a chamada Lei das Fake News, PL 2.630/2020, que busca criar parâmetros para a responsabilização das plataformas digitais. O projeto já passou pelo Senado e está pronto para ser levado a votação em plenário na Câmara dos Deputados, mas enfrenta resistências políticas e interesses econômicos, enquanto a tecnologia corre solta, e com ela, os riscos crescem.
Em paralelo, surgiram propostas específicas para regular o uso de inteligência artificial, o PL 2.338/2023, que estabelece um marco regulatório para inteligência artificial no país. A proposta legislativa já passou pelo Senado e agora na Câmara dos Deputados segue tentando equilibrar inovação com segurança.
São passos importantes, mas lentos – e a tecnologia não espera a cada mês sem regulação significa:
- Uma média de 27 novos apps de manipulação de vídeo lançados globalmente;
- Um crescimento de 300% em casos judiciais por deepfakes no Brasil entre os anos de 2023 e 2024;
- Crescente uso político de IA generativa em eleições.
O filme G20 cumpre o papel que grandes obras de ficção tiveram no século XX: antecipar dilemas éticos antes que se tornem crises reais. O enredo escancara que na era digital, a primeira linha de defesa não está nos exércitos, mas na governança de dados, na educação crítica e na capacidade de distinguir o real do fabricado.
Se no cinema há uma heroína capaz de salvar o dia, na vida real a proteção da democracia e da estabilidade social exige outro tipo de ação: leis modernas, fiscalização ativa e, principalmente, educação digital da população. Regular não é censurar, é proteger a verdade em tempos em que a mentira ganhou ferramentas cada vez mais sofisticadas.
*Laryssa Almeida é jornalista, advogada, mestre em Direito Econômico pela UFPB, doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca na Espanha. Ex-Secretária de Ciência Tecnologia e Inovação e de Desenvolvimento Econômico do Município de Campina Grande. Atualmente, Laryssa é Assessora Especial da CINEP, responsável pelo escritório de representação da companhia em Campina Grande.